Leonardo da Vinci, artistas-engenheiros e a mecanização da natureza




Há várias formas de se descrever um gênio, seja inventor, artista, engenheiro, arquiteto, anatomista, ou ainda, todos eles como os foi Leonardo da Vinci. O que pretendo aqui, no entanto, é trazer luz às circunstâncias que tornaram possível a manifestação de tais habilidades, bem como o que estas significarão nas estruturas sociais europeias dos séculos seguintes.

Para entender melhor, voltemos à Idade Média, mais especificamente ao século XII: neste período a Europa redescobria técnicas antigas com as invasões bárbaras e desvendava novos saberes com as expedições militares e comerciais ao Oriente. Provenientes das riquezas da guerra e do comércio, formavam-se cidades, acumulavam-se capitais e cresciam as artes mecânicas, isto é, as indústrias têxtil e armamentista, a agricultura e a navegação. Dentro dos mosteiros, e posteriormente nas próprias cidades, se desenvolvia uma classe de artesãos livres detentores de um saber técnico cada vez mais necessário para atividades agrícolas, para a guerra, para o transporte, etc. Resumidamente, o que quero dizer é que a sociedade europeia se organizava de uma forma em que não se permitia mais uma ciência desinteressada. 

Nos séculos XIV e XV estes fatores são intensificados quando epidemias assolam um terço da Europa provocando uma crise de mão de obra: precisa-se agora de novas fontes de energia como o vento e a água e principalmente de máquinas autônomas. O artesão tradicional já não basta para a complexidade do Baixo Medievo; seu trabalho manual e limitado, cuja ferramenta é apenas um prolongamento do corpo, é  ainda totalmente dependente das forças humana e animal. Para organizar as cidades, prover sua defesa, seu abastecimento de água, sua higiene, etc., surgem novas categorias socioprofissionais: os empreiteiros. Segundo Edgar Zilsel, "os mais importantes deles podem ser chamados de artistas-engenheiros, pois não apenas pintavam seus desenhos, modelavam suas estátuas e construíam catedrais, como também construíam equipamentos de suspensão, terraplanagem, canais, esclusas, armas e fortalezas, descobriam novos corantes, detectavam as leis geométricas da perspectiva e inventavam novas ferramentas de medida para a engenharia e artilharia". 

Conhecidas as orientações socioeconômicas em que se firma a Renascença (XIV  XVI), podemos facilmente situar Leonardo nesta classe de engenheiros. Vejamos então a imagem a seguir:

A cidade ideal. Leonardo da Vinci, 1487 – 1490.

Após a praga atingir a população de Milão, da Vinci arquiteta o que talvez seria seu projeto mais ambicioso. Com o propósito de funcionar melhor e mais rápido, com melhores sistemas de comunicação e saneamento, a cidade combinava uma série de canais que serviriam para o comércio e como sistema de esgoto. As áreas mais baixas eram destinadas aos comerciantes e viajantes, enquanto amplas estradas se encontravam em áreas mais altas para a circulação da burguesia, com arcos, pilares, e prédios mais elegantes.

No entanto, ainda que disponham de um admirável saber enciclopédico, da Vinci e os demais artistas-engenheiros não representam a sistematicidade característica da ciência moderna. Não podemos, portanto, enxergar aí a origem imediata e revolucionária do método experimental. Em vez disso, digamos que são como cientistas prematuros. Muitas das ideias de Leonardo, por exemplo, mal chegaram a sair do papel. Da mesma forma, embora as necessidades pré-capitalistas de comerciantes, banqueiros e militares fossem inegavelmente visíveis, os escritos matemáticos de 1300 a 1600 não passavam de descobertas isoladas, breves notas e observações dispersas. Neste sentido, não há nos códices de Leonardo uma só ideia científica de caráter teórico que já não fosse conhecida nas escolas italianas dos séculos XV e XVI. Há, por exemplo, diversos outros polímatas à sua altura, como Girolamo Cardano, Filippo Brunelleschi, Francesco di Giorgio e Mariano Taccola.


Feto no útero. Leonardo da Vinci, 1510.



Tratado de arquitetura, engenharia e arte militar. Francesco di Giorgio, 1482.


Estudos para navios. Mariano Taccola, 1427 – 1440.

Além do mais, da Vinci não estava realmente preocupado em explicar e provar seus descobrimentos. Pelo contrário, alguns historiadores afirmam que suas máquinas eram quase que apenas um divertimento para as classes mais altas. Mas o que isso significa, afinal? Ora, ao situá-lo em um contexto específico, evitamos glorificações irrealistas. Quer dizer, mais do que um gênio, da Vinci é simplesmente um homem de seu tempo.

Em todo o caso, passemos agora para outra questão, para além das esferas econômicas e sociais. Isto é, também a cultura e a religiosidade acompanham a técnica e seu processo na história, fazendo com que o homem reoriente a visão que tem de si no universo. Assim, a partir do momento em que a máquina autônoma se torna um modelo, as regras de sua fabricação se convertem em leis da natureza, de forma que toda a realidade física e biológica seja explicada em termos de matéria e movimento. Ou seja: os engenheiros do Renascimento fizeram da natureza ela própria uma máquina. Observe as imagens:


Códice Voo dos Pássaros. Leonardo da Vinci, 1505 – 1506.

Aeroplano. Leonardo da Vinci, 1485.

Claramente baseado na anatomia de um pássaro, o aeroplano tornou-se uma das invenções mais famosas de da Vinci. A "máquina voadora" ainda nos é um ótimo exemplo para a concepção de uma natureza mecanizada cujos corpos orgânicos e mecânicos operam sob os mesmos princípios. Esta é a máxima da engenharia renascentista. Segundo Marco Cianchi, "o homem é uma máquina, o pássaro é uma máquina, o universo inteiro é uma máquina. O movimento de um braço, de uma perna, o bater de uma asa são todos governados por leis precisas da mecânica e da matemática que, uma vez identificadas por Leonardo, são reproduzidas nas suas engrenagens".

E se o mundo é uma máquina, quem é seu construtor? Esta concepção se estende ao discurso teológico quando, a partir do século XIV, a imagem de um Deus Mecânico começa a ser difundida no imaginário coletivo europeu. Basicamente, ela permitia a consolidação da ideia de leis da natureza, mas, mais do que isso, tinha a capacidade de conciliar tanto exigências da Igreja Católica quanto de um sistema econômico produtivo. Assim, segundo Paolo Rossi, o mundo era entendido como "um imenso relógio, obra admirável do Grande Arquiteto, composto de rodas e molas, cada um dos quais pode separar-se do mecanismo e ser estudado e compreendido".

Pois bem, acredito que após este estudo possamos entender de maneira mais clara o que todas estas questões querem dizer. Isto é, ainda que pareça contraditório, a ciência é uma parte significativa da cultura e, como esta, segue diferentes orientações através do tempo e do espaço: "na verdade, o que não pode ser mantido é a ideia de uma ciência pura, virgem de todo condicionamento sócio-histórico [...] como se ela tivesse miraculosamente surgido da inteligência etérea da humanidade ou tivesse descido de um empíreo ideal". De certa forma, a crítica de Claude Chrétien esclarece o fato em que tenho insistido, de que o conhecimento técnico e utilitarista encontrado nas invenções de da Vinci é conduzido especialmente pela conjuntura própria à Europa renascentista. Por isso, para que se entenda as ideias e pensamentos deste e de outros inventores de maneira genuína, é preciso levar em conta as profundas estruturas socioculturais das quais eles não apenas pertenciam, mas, ao mesmo tempo, transformavam.


BIBLIOGRAFIA 
BROWN, Tom. Leonardo da Vinci: Complete Works and Inventions. Rainbow Art, 2017.
CHRÉTIEN, Claude. A Ciência em Ação: Mitos e Limites. Campinas: Papirus, 1994.
LAGUNA, Rogerio. De la Máquina al Mecanicismo: Breve Historia de la Construcción de un Paradigma Explicativo. Bogotá: Revista Colombiana de Filosofía de la Ciencia, 2016.
MARTINS, Antônio Carlos (org). Maravilhas Mecânicas. Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciências Afins, 2014.
PRIGOGINE, Ilya; STENGERS, Isabelle. A Nova Aliança: Metamorfose da Ciência. Brasília: Universidade de Brasília, 1991
ROSSI, Paolo. Los Filósofos y las Máquinas (1400 - 1700). Barcelona: Labor, SA., 1970.
ZILSEL, Edgar. As Raízes Sociais da Ciência. São Paulo: Khronos, Revista de História da Ciência, 2018.

Comentários

  1. Gostei muito do conteúdo. O texto faz um belo resumo da importância de Da Vinci. Parabéns!!!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas