A pintura no Renascimento Italiano: Giotto

O período do Renascimento (1300  1600) é utilizado na historiografia para organizar um conjunto de mudanças na cultura ocidental. Para facilitar a análise, é dividido três momentos: o Trecento, Quattrocento e Cinquecento. Neste estudo, analisarei cada um deles a partir de suas obras mais características, no entanto limitadas à pintura e ao universo italiano.

Nascido em uma cidade próxima a Florença, em cerca de 1267, o pintor e arquiteto Giotto di Bondone assinala este primeiro momento com uma inédita naturalidade das formas. Seu estilo revela uma mudança significativa na mentalidade ocidental, marcando um período de reestruturação nas realidades urbanas e cristãs.

As mudanças tanto no pensamento quanto na arte europeia são explicadas pelo processo que marcou o fim da Idade Média, com o crescimento do comércio e de cidades organizadas em torno de um princípio individualizador de produção e ganhos econômicos. Formavam-se os burgos, os centros artesanais, as primeiras casas bancárias, os postos e feiras comerciais, etc. Assim, o modelo comercial priorizava cada vez mais a iniciativa do indivíduo, imerso em um sistema econômico e social mais dinâmico. Segundo Nicolau Sevcenko, 

O Renascimento assinala o florescimento de um longo processo anterior de produção, circulação e acumulação de recursos econômicos, desencadeados desde a Baixa Idade Média. São os excedentes dessa atividade crescente em progressão maciça que serão utilizados para financiar, manter e estimular uma ativação econômica. Surge assim a sociedade dos mercadores, organizadas por princípios como a liberdade de iniciativa, a cobiça e a potencialidade do homem (SEVCENKO, 1994).

No entanto, toda essa efervescência é posta em prova com as sucessivas crises que se alastram no século XIV, como a peste, fome, invasões turcas, queda de produção, etc. O principal resultado deste conjunto de fatores  crise e reorganização econômica  será a própria reformulação do homem medieval, mais consciente de si, dos outros e de sua história. Assim, a perspectiva coletivista feudal, fruto das relações de dependência senhoriais, cede lugar à tomada de consciência do indivíduo e de suas vontades próprias, cada vez mais expressas na arte. É neste sentido em que a inovação estética de Giotto deve ser analisada.

A partir daí, antigas estruturas que antes pareciam eternas  hierarquia feudal, autoridade da Igreja, valor dos sacramentos  passaram a ser questionadas. No campo da pintura, Giotto foi o principal responsável por romper com a típica rigidez dos ícones bizantinos. Para que fique mais claro, os levantamentos deste estudo serão feitos a partir do afresco da Lamentação, localizado na Capela de Scrovegni, em Pádua, Itália. 

Obra da semana - A Lamentação de Giotto * Galeria 419
Giotto di Bondone, A Lamentação. Capela de Scrovegni, Itália, 1306.

Pintada no ano de 1306, a cena faz parte de um conjunto de outros afrescos que compõem uma narrativa sobre a vida e morte de Cristo. Aqui, testemunhamos o momento após a Crucificação, onde Maria, alguns apóstolos e outros seguidores lamentam sobre o corpo. Sua morte é representada com uma grande carga emocional, em que cada gesto e expressão facial exala uma profunda tristeza, dor ou desespero, expressos de diferentes maneiras de acordo com a particularidade de cada figura. Por exemplo: no plano inferior direito se encontra Maria Madalena, segurando com grande pesar os pés de Cristo. Está sentada no chão, com o rosto e a postura baixos, introspecta em seu próprio luto. Enquanto isso, São João se coloca de braços abertos inclinando-se ao corpo estendido, em um ato de profunda incredulidade.

Detalhe de Maria Madalena


Detalhe de São João.

Para intensificar o efeito dramático da cena, os elementos são arranjados de forma em que o foco se dirija à Maria e Cristo em seus braços. Todas as linhas imaginárias convergem na aproximação das duas faces, onde é nítida a dor da Virgem ao perder seu filho, contorcida em angústia.

Detalhe de Cristo e Maria

A série de afrescos presentes na Capela de Scrovegni, em especial o da Lamentação, transmitia uma sensibilidade nunca experimentada pelos contemporâneos de Giotto. Isto é, a caracterização de figuras religiosas a partir de traços e sentimentos humanos não era comum nas produções artísticas medievais, pois estas seguiam valores teológicos e espirituais considerados superiores à matéria e ao mundo terreno. Dessa forma, aparentavam ser "mais simples" não por inferioridade técnica, mas porque os iconógrafos não tinham nenhum interesse na imitação do mundo natural. No entanto, com as cidades  e o indivíduo cada vez mais ao centro da vida social, este cenário mudará completamente: num tempo de fomes e de guerras, de urbanização e iniciativa comercial, a terra e os homens chamam a atenção dos artistas, mais sensíveis ao real. Estes, orientados por valores humanos e materiais, interessam-se agora pela paisagem, pela perspectiva, pelos traços individuais (DELUMEAU, 1994). Por isso, Giotto cria um mundo a partir da tridimensionalidade e do naturalismo das formas, captando pela verossimilhança a solidez das estruturas terrenas: os elementos parecem sentir o peso da gravidade, dotados de massa, extensão e proporcionalidade. 

Esta mudança de pensamento se manifesta de todas as formas, e interfere, por exemplo, na própria lógica espacial. Nos tradicionais ícones bizantinos, o espaço seguia uma orientação simbólica, organizado pela simples justaposição dos elementos. As figuras eram chapadas e geométricas, e a rigidez de suas linhas impedia a gradação natural das cores. Geralmente, ao fundo havia apenas um plano dourado afim de rebater a luz que o iluminava.

Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, Ícone Bizantino.

As primeiras obras renascentistas, ao contrário, seguem a concepção de um espaço homogêneo, infinito e tridimensional, onde os elementos da cena são articulados e organizados dentro de um todo  isto é, de um sistema  fazendo uso da harmonia, da luz, da sombra, da cor e do movimento. Em outras palavras, recorre a técnicas que transmitem ao espectador uma ilusão de profundidade. Segundo Sevcenko, 

O novo estilo artístico multiplicava o espaço dos interiores e, com a preocupação de dar às pessoas, aos objetos e paisagens retratados a aparência mais natural possível, parecia multiplicar a própria vida. Uma arte desse tipo impressionava muito mais os sentidos que a imaginação, convidava muito mais ao desfrute visual do que à meditação interior. Era uma arte que remetia o homem ao próprio homem e o induzia a uma identificação maior com seu meio urbano e natural, ao contrário dos estilos medievais que predispunham as pessoas a penetrarem nos universos imateriais das hostes celestiais (SEVCENKO, 1994).

Nesse sentido, podemos pensar de que forma o novo estilo refletia as transformações da sociedade no campo religioso. Desde seu início, o cristianismo fora uma instituição construída e administrada pelos intelectuais do alto clero seguindo estritamente as doutrinas católicas. Na Baixa Idade Média, porém, assiste-se a um movimento de laicização da sociedade e da cultura difundido entre as camadas populares. Isso não significa que o Renascimento tenha surgido em contraposição à religião, mas sim, que ele reestrutura as relações dos fiéis com o divino questionando a cultura canônica da Igreja. Como explica Jean Delumeau,

O cristianismo viu-se nessa altura perante uma nova mentalidade, uma mentalidade complexa, feita do receio da danação, da necessidade de devoção pessoal, da aspiração a uma cultura mais laica e do desejo de integração da vida e da beleza na religião. O anarquismo religioso dos séculos XIV e XV levou, sim, a uma ruptura, mas também a um cristianismo rejuvenescido, mais estruturado, mais aberto às realidades do dia a dia, mais habitável pelos leigos, mais permeável à beleza do corpo e do mundo (DELUMEAU, 1994).

Se considerarmos a origem humilde e a condição de artesãos da maioria dos pintores desse período, podemos entender sua participação no rejuvenescimento da espiritualidade, baseados, por exemplo, na experiência franciscana de apreciação ao mundo natural e a toda a criação divina. Concentremo-nos no caso de Giotto: a expressão do cotidiano da vida urbana a partir de temáticas e narrativas bíblicas, bem como a valorização da dimensão humana e corpórea de Cristo, observadas no afresco da Lamentação, são ambas manifestações de um cristianismo leigo, formado pelas massas, uma vez que elevam a realidade da vida popular ao nível do espírito divino. 

É sob esses pilares, portanto, que se estabelecerão os próximos anos da Renascença, articulados a partir da lógica humanista cristã medieval estudada até aqui. Assim, o característico aprimoramento das técnicas perspectivas, a conjuntura italiana favorável à burguesia e as teorias filosóficas em alta no século XV serão analisadas num próximo estudo, onde veremos como os artistas do Quattrocento conquistam novos papéis na sociedade.


BIBLIOGRAFIA
ANTONIO, Jacqueline Rodrigues. Giotto: O pintor florentino que humanizou as formas. Maringá: UEM, 2013.
DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento. Lisboa: Estampa, vol. 1, 1994.
GIRARDI, Monica. Giotto. Londres: Dorling Kindersley, 1999.
MELO, Renato Silva. Giotto e o Nascimento da Perspectiva: A formação do belo a partir de imagens dialéticas. Revista História e Cultura, vol. 9, Nº 1, 2020.
SEVCENKO, Nicolau. O Renascimento.  São Paulo: Atual, 1994.

Comentários

  1. Como pode-se perceber, a autora demonstra ter grande conhecimento sobre o assunto abordado, não somente relatando com maestria as características gerais do renascimento italiano, como também condicionando os indivíduos desse período (artistas e suas obras) à um determinado contexto, o que legitima suas ações e formas de conceber o mundo. A autora consegue, com maestria, conciliar o olhar historiográfico - que poderia ser extremamente engessado, porém preciso - com a naturalidade que a penas o mais genuíno admirador da historia, como campo da humanidade, poderia conferir.

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